segunda-feira, 20 de agosto de 2007

A crise da verdade e da esperança


“Esqueçam tudo o que eu escrevi” alertou um presidente da república ainda no primeiro biênio de seus oito anos de governo. “Ser oposição é uma coisa, governar é outra coisa bem diferente”, diria o seu sucessor. Para além de todas as implicações e complicações da árdua tarefa de governar um país, o que estas declarações apontam é para o caráter transitório, relativo e limitado não só da política brasileira mas da própria condição humana. Não se trata apenas do fato de que alguns deliberadamente deixam de acreditar (se é que acreditavam) naquilo que dizem. O que acontece é que, hoje, mais do que nunca, pouca gente consegue afirmar com toda certeza que a sua teoria será válida para todos os lugares e para todos os tempos.

Todas as épocas portam os desafios e as possibilidades que lhe são peculiares. Muito cuidado, portanto, antes de nos deixarmos tomar por qualquer saudosismo ressentido do tipo “naquele tempo isso não era assim!”. De fato, “isso” não é “assim” — bom ou mal que seja — de forma permanente. Desde Heráclito, filósofo grego do século IV a.C. o devir é a marca da existência humana. “Um homem não pode entrar num rio duas vezes, posto que nem o rio, nem o homem será o mesmo”, acreditava. Mas o pensamento de Heráclito foi engolido pela posição mais cômoda de Parmênedes, também filósofo grego, que se contrapunha ao devir por uma questão de ordem prática: se o ser está em constante movimento, nenhum conhecimento é possível. Parmênedes nos devolve, com isso, aquela esperança de que as coisas podem, em algum momento, encontrar o seu lugar e não nos pegar mais de surpresa, com mudanças inesperadas.

Na mordenidade, a civilização ocidental se depara com uma pergunta constrangedora: afinal, o que é a verdade? A partir deste momento ficou claro que assumir uma posição de certeza sobre o que quer fosse seria muito complicado. Conceitos como moral, justiça, autoridade começaram a perder seu lugar de inquestionabilidade.

Se por um lado o pensamento moderno nos possibilitou avanços sociais e intelectuais inquestionáveis, por outro, nos legou problemas sérios. O mundo de hoje convive com uma angústia que herdou destas questões surgidas na modernidade.

Vivemos o que se convencionou chamar de “queda das utopias”. Ninguém acredita muito, ou durante muito tempo, em qualquer ideologia que se levante com a promessa de mundo perfeito. A “verdade” se tornou um conceito que, por mais desejado que seja, sempre deixa uma pontinha de dúvida. Não é mais tão fácil acreditar em políticos honestos e em governos transparentes. Perdemos a capacidade de simplesmente acreditar em promessas. “Perdemos a ingenuidade”, dizem alguns. “Alguém sempre esconde alguma coisa”, proclamam outros. “Ninguém é totalmente puro e verdadeiro naquilo que faz ou diz”, completam.

Disso decorre um efeito dos mais complicados de nossas sociedades ditas pós-modernas, a saber, sofre-se hoje de um enfraquecimento da palavra. Um enfraquecimento do poder de se comprometer com aquilo que se diz.

A palavra se enfraqueceu como fruto do mesmo movimento que dá início à chamada “queda das utopias” na cultura ocidental. O mundo que sobra como resto da segunda grande guerra é um mundo descrente da idéia de uma humanidade em constante progresso moral. Quarenta anos depois, a queda do muro de Berlim, tomada como marco histórico do fim da “guerra fria”, simbolizava o desfalecimento de um mundo até aquele momento dividido ideologicamente de forma clara — onde bastava escolher um lado para ter-se escolhido também o seu inimigo. Da abertura na Rússia (Perestróika) ao fenômeno chinês, o que se mostra é um mundo cada vez mais desenhado como um imenso bloco capitalista e por que não dizer, ocidentalizado.

Muito já se explorou sobre as conseqüências sociais de uma geração nascida num contexto onde faltam às utopias sociais. Que tipo de sujeito é esse que não acredita em nenhuma grande ideologia social? É possível pensar em cidadania, falar de ação social num mundo onde o principal desejo de um jovem é poder exibir a grife da moda? Que tipo de sociedade surge daí? Que tipo de humanidade? Que tipo de política? Que garantia temos? Que esperança?

De fato o que se perde na queda das utopias são duas coisas: a garantia da esperança e a esperança de uma garantia. Essas perdas fazem surgir na nossa sociedade, basicamente, dois fenômenos, duas vertentes de uma mesma angústia: o fundamentalismo e o cinismo. O fundamentalismo é uma negação pela via do “não pode ser”. “Não pode ser que não haja garantias!” E sendo assim, eu me agarro por decreto em qualquer discurso que a prometa. Nego a perda da garantia da esperança, com algo que possa de alguma forma iludir, dissimular a sua ausência. Os fenômenos eleitorais americanos dão bem o tom do que falo aqui. Bush foi reeleito com base num discurso fundamentalista e conservador (se ele acredita nisso é uma outra história).

O cinismo por sua vez é uma resposta angustiada à perda da esperança de uma garantia. No cinismo não se crê mais em garantias. Não se crê que alguém vá mesmo cumprir o que disse. Não se crê mais que o mundo possa ter solução. Não se crê que alguém vá ser punido por contrariar a lei. O exemplo proveniente do senado federal é no mínimo emblemático – o presidente Renan Calheiros não se sente obrigado, nem, muito menos, constrangido a responder de forma clara às acusações que lhes são imputadas. Para ele, basta o ditado de que uma mentira dita cem vezes torna-se verdade.

No cinismo a lei e a moral são fracas, assim como a palavra. Se não há garantias, também não há compromisso. Não há por que se comprometer com nada. Neste caso pode-se pensar nas últimas eleições municipais brasileiras, muito marcadas por uma atitude cínica para com o quadro eleitoral e personificada na opção pelo voto nulo e pela abstenção. O voto nulo e abstenção podem ser expressões de uma posição política bastante consciente. No entanto, essa via pode caracterizar, não uma convicção de protesto, mas, simplesmente, uma atitude do tipo “eu não tenho nada a ver com isso” — um ledo engano. Este tipo de participação política torna-se, então, servo de um desejo de não se comprometer nunca, para poder sempre lançar um olhar sarcástico do tipo “eu-sabia-que-ia-dar-errado”.

Contudo, a queda das utopias e a perda da esperança numa ideologia que garanta em si mesmo um mundo melhor não precisa nos lançar nem no fundamentalismo e muito menos no cinismo. O tipo de resposta às questões deste nosso tempo não precisa variar entre um radicalismo cego e intransigente por um lado e um desleixo cínico e descomprometido por outro.

De fato, a descrença em uma garantia externa pode e deve fazer com que cada um construa e contribua para um mundo melhor. O fato de haver pouca possibilidade de que o mundo venha a se tornar um lugar perfeito não significa que nada possa ser feito nem que não haja motivos para que algo seja feito.

Mais ainda, se não tenho mais ninguém em quem colocar a culpa posso assumir a minha responsabilidade na história pessoal e coletiva. Posso assumir que de fato minhas escolhas podem ser equivocadas. Assumir que, de fato, o meu candidato pode me trair. No entanto, posso assumir também que a minha alienação e esquiva contribuirão apenas para que nada seja feito. Assumir que meu papel na história implica em (por que não?) desejar e lutar para que outros se comprometam com aquilo que lhes cabe. Mas, acima de tudo, assumir que a covardia não está somente no medo da luta, mas também na artimanha da esquiva.

Emmanuel Mello

Um comentário:

Scrappetite disse...

Emmanuel
Gostei muito de seu artigo,inclusive
me fez pensar na posição nossa às ve
zes contundente, visto que as responsabilidades são válidas em
qualquer posição, a isenção completa
evidentemente trata-se de ledo engano.
Estarei lendo outros assuntos comentados por voce.
Parabéns pela forma especial de escrever.
Um abraço
Miriam Machado