domingo, 1 de junho de 2008

O escândalo da psicanálise e sua “via pioneira”: três tempos de uma trajetória lacaniana.

Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade,1 tese de doutoramento em psiquiatria, deixa claro que os primeiros trabalhos de Lacan que incluíam a pesquisa psicológica traziam a psicanálise apenas como coadjuvante de uma tarefa maior: retirar a psicologia do reducionismo biologizante, do naturalismo psicológico, que a medicina, mais especificamente a psiquiatria, à vinha colocando. O objetivo seria o de incluir o sujeito na gênese de sua morbidez e o apoio a essa tarefa Lacan não retirará ainda da psicanálise.

Para construir uma psicologia não reduzida ao realismo biológico uma porta de saída mais próxima e mais atualizada seria a das produções e pesquisas instigantes das ciências sociais e da antropologia que percebiam a experiência humana como fruto de emaranhado social e da relação do indivíduo com esse emaranhado. Lacan deparava-se com os benefícios e com as possibilidades de incluir em sua tarefa os avanços de uma teoria que pudesse dar conta da forma como o individuo percebe o mundo, como ele se percebe neste mundo e como se sente percebido por ele. Essa relação especular abre caminho para o primeiro grande movimento de Lacan no campo da psicologia não reducionista, a saber, a fundação de uma teoria do imaginário.

Esse recurso à uma visão sociológica poderia não ser motivado apenas por interesses intelectuais de Lacan. Notadamente, é seu engajamento clínico que o obriga a recorrer às ciências humanas. Um engajamento clínico associado à sua preocupação em re-introduzir na medicina a problemática do sujeito; de um sujeito como participante ativo da construção da realidade que lhe atravessa. Uma psiquiatria naturalista e biologizante não pode suportar a participação do sujeito na sua morbidade.

Contudo, a introdução da questão do sujeito traz consigo problemas sérios em termos metodológicos. Primeiramente, estabelecer o sujeito como objeto além de formalmente contraditório, implica a imposição de uma objetividade artificial ao sujeito do experimento que coloca em risco a viabilidade mesma desse experimento. Em segundo lugar, como vencer a complexidade da legitimação dos dados de uma pesquisa em que um objeto (o sujeito) está tão apto a adaptar-se à lógica do experimentador e oferecer-lhe o resultado que espera ­­– posto que recebeu dele as categorias que balizam a formulação dos problemas?2 Nos anos subseqüentes à sua tese, Lacan dedicar-se-á, em parte, a resolução deste problema.

É na tentativa de reintroduzir o sujeito na medicina que a antropologia (notadamente a teorias em torno da questão do dom de Marcel Mauss) ganhará lugar de destaque. A hipótese da tese é de que não só a psicose é um fenômeno de conhecimento mas, o conhecimento humano como um todo é essencialmente paranóico, posto que insiste em supor uma rigidez ilegítima na realidade.

Temos então um primeiro momento das investigações de Lacan que poderia ser definido como um “olhar” para fora da psiquiatria, em direção ao campo das ciências antropológicas, como forma de incluir uma subjetividade no doente – coisa que a psiquiatria insistia em não reconhecer.

A psicanálise ainda não tem lugar privilegiado, mas compõe um quadro de alternativas. Porém, é em 1936 no artigo “Além do ‘princípio de realidade’”, onde podemos perceber a teoria freudiana sendo tomada como um tipo de psicologia bem-sucedida. Nas palavras de Lacan: “A psicologia constitui-se como ciência quando a relatividade de seu objeto é por Freud postulada, ainda que restrita aos fatos de desejo.”3

Desde a tese Lacan procura demonstrar que, antes de ser reduzido a epifenômenos de processos neurais, os sintomas psicóticos possuem uma dimensão significativa, significável. Isso possibilitaria não só incluir a psicanálise no quadro de seus aliados mas também dedicá-la a partir de agora, algum destaque, pois o que Freud havia demonstrado na sua teoria era que o sintoma psicológico traz consigo um sentido, uma significação. Ao propor que as relações de objetos são contingentes em grande medida aos modos de significação da realidade Freud abria espaço e avanço na tentativa de apreensão objetiva do sentido na investigação dos fenômenos psíquicos. Com afirma Lacan naquela altura: “A nova psicologia não reconhece à psicanálise apenas o direito de cidadania; recortando-a incessantemente no progresso de disciplinas oriundas de outros âmbitos, demonstra seu valor de via pioneira”4.

A psicanálise, para Lacan, tem algo a dizer. A psicanálise se mostrava uma grande ferramenta. No entanto, dado o espírito científico de Freud, ela ainda estava presa demais à necessidade de responder aos problemas usando duas vias que, para Lacan, eram por demais complicadas, a saber, os pressupostos biológicos, por um lado, e um certo ranço metafísico da psicologia abstrata por outro.

Entramos, assim, num segundo momento. A psicanálise só serviria a Lacan se ela pudesse ser retirada do obscurantismo e do sentimentalismo com que vinham sendo tratados os seus temas cruciais. É necessário então submetê-la ao rigor epistemológico da filosofia e com isso poder garantir um certo lugar mais digno para a descoberta de Freud.

É sua freqüência ao curso de Alexander Kojève, “Introdução à leitura de Hegel”, proferida nesta época (1934) na escola de Altos Estudos de Paris que lhe permitiu iniciar-se na filosofia hegeliana e interrogar-se sobre a gênese do eu por intermédio de uma reflexão filosófica concernente à consciência de si.

Kojève possibilita a Lacan estabelecer um elo entre o desejo baseado no reconhecimento (ou desejo do desejo do outro) e o desejo inconsciente (realização no sentido freudiano). Era a possibilidade de utilizar o discurso filosófico para conceituar uma visão freudiana que lhe parecia insuficiente e, ao mesmo tempo, antropologizar o desejo humano, ainda que colocando-o no lugar da consciência hegeliana que remetia a descoberta vienense a uma idéia de desejo inconsciente que mais tarde foi problematizada dentro de uma perspectiva fenomenológica. É pública e notória a influência de Kojève na construção de um dos pilares de todo edifício teórico lacaniano: a noção de desejo e sua relação com o seu conceito de subjetividade.

Ganha espaço uma teoria do imaginário do sujeito, onde o “eu”, longe de ser um núcleo essencial da natureza humana, reduz-se a projeções identificatórias de um sujeito com um outro especular da mesma espécie.

É sob esses efeitos que Lacan apresenta, em 1936, por ocasião do congresso de Marienbad, a primeira formulação de sua famosa teoria do “estágio do espelho” num trabalho intitulado “O estádio do espelho como formador da função do eu”5.

Entre os 6 e os 18 meses de idade a criança forma uma representação de sua unidade corporal por identificação com a imagem do outro. O que antes era uma vivência de um corpo despedaçado transforma-se, por um processo de identificação ao outro, numa primeira demarcação de si. Ao procurar a realidade de si, ela encontra apenas a imagem do outro com a qual se identifica e na qual, por isso mesmo, se aliena. A experiência exemplar que marca esta fase é a da satisfação que a criança tem ao perceber sua própria imagem num espelho. Será, então, na relação com esse outro especular, mas também nos equívocos, nos conflitos, enfim, nos impasses dessa relação com o outro, um outro que lhe é próximo, familiar, que um indivíduo pode começar a se constituir como “si mesmo”.

No entanto, a experiência do espelho, enquanto fato empírico, não é, para Lacan ainda suficientemente capaz de proporcionar uma conceitualização teórica sobre o narcisismo primário. O que ela assinala é um tipo de relação inaugural do indivíduo com seu semelhante através da qual ele demarca a totalidade do seu corpo. Não há um sujeito ainda aqui, apenas algo da ordem de uma “matriz simbólica”. Está, portanto, tudo preparado para a chegada do simbólico e para a constituição de um sujeito, a partir de sua imersão na linguagem, como afirma Lacan: “A assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser ainda mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentação que é o filhote do homem nesse estágio de infans parecer-nos-á pois manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o [eu] se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito.”6

Lacan se dá conta de que a teoria do imaginário não comporta a complexidade do filhote humano. Esse imaginário não oferece uma determinação tal que se produza uma regulação da conduta como no caso dos animais. Também a forma como o imaginário incide sobre ele, isto é, o fato de não ter seu interesse diminuído mesmo depois de saber ser um reflexo o que tem a sua frente, além da “assunção jubilatória” que marca profundamente essa sua descoberta, já são suficientes para perceber que o imaginário no homem não funciona da mesma maneira que no animal.

Mas em 1949 impulsionado por sua leitura da “Estruturas elementares de parentesco”, de Claude Lévi-Strauss, pai do estruturalismo, Lacan começa a dar corpo à sua noção de simbólico, sugerindo uma nova concepção da alteridade e de intersubjetividade que desembocaria na invenção do termo “grande Outro” e que se distanciaria radicalmente de todas as concepções pós-freudianas da relação de objeto que estavam em vigor na época. Além das representações do eu, especulares ou imaginárias, o sujeito é determinado, segundo Lacan, por uma ordem simbólica designada como “Lugar do Outro”, perfeitamente distinta do que é do âmbito de uma relação com o outro. Para Lévi-Strauss a cultura é um conjunto de sistemas simbólicos constituídos muito antes de traduzirmos um dado externo em símbolos. Só há social porque há um pensamento simbólico, uma função simbólica que constitui o fato cultural ou social. Assim, influenciado pelas idéias do lingüista russo Roman Jakobson juntamente com sua leitura de Freud, é Lévi-Strauss quem primeiro estabelece as ligações entre inconsciente e linguagem que tanto interessaram a Lacan. Como afirma o próprio Lévi-Strauss: “O período de 1920-1930 foi o das teorias psicanalíticas na França. Por meio delas, aprendi que as antinomias estáticas em torno das quais nos aconselhavam a construir nossas dissertações filosóficas e mais tarde nossas lições — racional e irracional, intelectual e afetivo, lógico e pré-lógico — não eram mais que um jogo gratuito. Antes de mais nada, além do racional, existia uma categoria mais importante e mais válida, a do significante, que é a mais alta maneira de ser do racional...”7

A antropologia social de Lévi­­-Strauss e a lingüística moderna de Jakobson (discípulo e divulgador de Ferdinand Saussure e de seu Curso de Linguística Geral) acenam com a possibilidade de encarar o conceito de inconsciente enquanto uma forma, enquanto algo estruturado por leis de articulação, estruturado pelas mesmas categorias com que a linguagem encadeia seus símbolos, seus signos, seus significados e seus significantes.8 A constituição do inconsciente (e, evidentemente, também do consciente) só é possível, assim, por um acesso ao simbólico – quando da aquisição da linguagem – e frutos de um mesmo ato e, portanto, não um como epifenômeno do outro.

O estruturalismo, ou mais especificamente, as ciências das estruturas da linguagem será, para Lacan, aquilo que faltou a Freud para que ele enunciasse o inconsciente como uma relação entre significantes: “O inconsciente, a partir de Freud, é uma cadeia de significantes que em algum lugar (numa outra cena, escreve ele) se repete e insiste, para interferir nos cortes que lhe oferece o discurso efetivo e na cogitação a que ele dá forma.

Nessa fórmula, que só é nossa por ser conforme tanto ao texto freudiano quanto à experiência que ele inaugurou, o termo crucial é o significante, ressuscitado da retórica antiga pela lingüística moderna, numa doutrina cujas etapas não podemos assinalar aqui, mas da qual os nomes de Ferdinand de Saussure e Roman Jakobson indicarão a aurora e a culminância atual, lembrando que a ciência-piloto do estruturalismo no Ocidente tem suas raízes na Rússia em que floresceu o formalismo. Genebra, 1910, e Petrogrado, 1920, dizem bem por que seu instrumento faltou a Freud.”9

Era preciso mostrar que um futuro possível e duradouro para a psicanálise dependeria de retirar-lhe o ranço biologista e o obscurantismo metafísico tão prejudiciais à uma disciplina que se deseja como uma ciência séria – a contribuição do estruturalismo poderia ajudar abundantemente nesta tarefa. Ao mesmo tempo, tratava-se de demonstrar como Freud, ao buscar um sentido no sintoma, havia antecipado as bases em que se apoiavam o estruturalismo. “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” é apresentado em setembro de 53 e marca, a partir do próprio título, a aposta de Lacan nesta contribuição e os alicerces do seu “retorno a Freud”

Retornar a Freud seria retornar ao caminho que Freud havia estabelecido; retornar ao modo de concepção teórica e clínica da subjetividade compatível com o rigor e a grandeza da empreitada que Freud havia iniciado. Também significava re-significar a maioria do aparelho conceitual freudiano numa abordagem mais rigorosa; reconduzir seus conceitos, trazê-los a uma linguagem mais moderna e antenada às descobertas das ciências do homem. Era necessário perceber a indiscutível influência que o simbólico exerce sobre a constituição do humano e como a linguagem lhe serve não só como um mediador com o mundo, mas, e muito mais profundo do que isso, como essa relação com o mundo é, por sua vez, estruturada a partir de um modo de apreensão e assimilação inconsciente calcada nos mesmos processos encontrados na linguagem. Para Lacan, era isso que Freud prenunciava, ao dar na sua clínica, lugar para a fala, ao perceber o caráter literário do sonho e ao propor uma interpretação para o relato do drama que o sujeito oferece ao analista.

Em segundo lugar, era preciso restituir o verdadeiro sentido que Freud havia dado ao “eu”10 como um processo secundário e sintomático ao aparelho psíquico. O “eu” não poderia mais ser entendido como o núcleo essencial do homem, o centro de comando, que deveria ser reforçado para ganhar autonomia. Reforçar o “eu”, além de implicar no reforço de um sintoma, demonstrava a que patamar de desinteresse o inconsciente havia sido relegado por seus contemporâneos.

A leitura dos textos de Freud é exigida como condição “sine qua non”. Era importante retornar à letra de Freud, saber o que ele escreveu, lê-lo com mais atenção. O “retorno a Freud” marca o início do que poderíamos chamar de um ensino lacaniano e coincide com a inauguração de seus seminários, a forma mais característica deste ensino. Os seminários começam totalmente dedicados à elucidação de textos como “As Conferências introdutórias”, “Estudos sobre Histeria”, “A interpretação dos Sonhos”, enfim, textos que tratem, é claro, da técnica inaugurada por Freud. O objetivo era o de demonstrar certo descaminho da psicanálise ao desejar “restituir” uma suposta soberania do “eu” perdida com a neurose.

O que temos até aqui? Vemos como a psicanálise passa de mera coadjuvante a personagem principal no interesse epstêmico-clínico de Lacan. Penso que podemos definir este processo que culmina com o lema de “retorno a Freud” como uma tentativa de dar dignidade à psicanálise; torná-la aceitável como empreendimento investigativo da subjetividade humana. A “releitura” pode ser entendida neste momento como uma depuração dos termos freudianos, usando, para isso, toda a gramática das ciências sociais e da filosofia. Trata-se de demonstrar que a psicanálise pode concordar, com o panteão filosófico da mordenidade. Era preciso iluminar a psicanálise, esclarecê-la. Era preciso retirá-la do obscurantismo fazendo-a se encontrar com a Aufklärung11.

Porém, em 1957, Lacan publica um artigo que pode ser tomado como emblemático de uma clara mudança. Trata-se de “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde de Freud”. Por um lado Lacan pretende demonstrar que o inconsciente, tal como Freud o pressupôs, traz em si, na sua estrutura, a incidência da relação do sujeito com o simbólico, que o estrutura da mesma forma que a linguagem – o que obrigaria por parte dos pós-freudianos a uma reformulação dos seus conceitos. Como ele mesmo afirma: “Nosso título deixa claro que, (...), é toda a estrutura da linguagem que a experiência psicanalítica descobre no inconsciente. Pondo desde logo o espírito prevenido em alerta, porquanto é possível que ele tenha de reavaliar a idéia segundo a qual o inconsciente é apenas a sede dos instintos.”12

Por outro lado, é também no seu título que Lacan deixa claro que a descoberta freudiana, o inconsciente, marca uma inovação sem precedentes na história do pensamento humano. Depois de Freud, a razão não seria mais a mesma. Não se trata somente de dizer com Freud que o inconsciente é um pensamento sem consciência, mas, muito mais do que isso, dizer que o objeto caro à toda tradição filosófica desde a antiguidade, estandarte do pensamento ocidental e defendida a ferro e fogo na modernidade, depois de Freud, estaria marcada por uma divisão. Freud revelaria a verdade que toda filosofia ocidental insistia em não querer saber, ou seja, que o sujeito pensa no inconsciente: “... penso onde não sou, logo sou onde não penso”. É a subversão do cogito cartesiano “penso, logo sou”, e uma subversão de toda idéia de subjetividade da modernidade. Esse seria, de fato, o grande escândalo que a psicanálise deixou a descoberto e que o leva a afirmar: “Foi esse o grande abismo aberto ao pensamento de que um pensamento se fizesse ouvir no abismo que provocou, desde o início, a resistência à análise. E não, como se costuma dizer, a promoção da sexualidade no homem. (...) E a evolução da psicanálise conseguiu, por um cômico passe de mágica, fazer dela uma instância moral, berço e lugar de expectativa da oblatividade e da amância”.13

Nos encontramos, agora, no centro do que classifico aqui de um terceiro momento. A Psicanálise traz algo verdadeiramente novo ao cenário das disciplinas modernas. Ela não pode ser reduzida nem a uma disciplina psicológica, nem a uma ciência social e muito menos à uma filosofia. Ao introduzir seu conceito de inconsciente, Freud inaugura uma nova modalidade de entendimento da subjetividade humana onde o que traz a verdade de um sujeito não é sua consciência, não é a imagem que traz de si, mas o inconsciente, a “outra cena”, onde o sujeito pensa sem consciência e produz um saber que desconhece.

Neste terceiro momento, configura-se de maneira decisiva a separação entre o ensino lacaniano e o universo dos psicanalistas pós-freudianos. Abre-se aqui o trilhamento futuro que desembocaria nos grandes temas da reflexão lacaniana, tais como, a pulsão de morte, o gozo, fantasia, desejo e etc...

Para concluir ressaltaria que o movimento que Lacan faz em direção à psicanálise pode contribuir para uma reflexão sobre o lugar da invenção freudiana no conjunto das disciplinas dedicadas ao conhecimento humano. Ela não se acomoda em nenhuma classificação generalista. Não é filosofia, nem ciência natural, muito menos uma pedagogia.

Além disso, a maneira como Freud propõe o inconsciente faz também com que nunca possamos identificar um tratamento analítico a uma psicoterapia. O inconsciente é aquilo que distancia a psicanálise de todo ideal promovido pelas diversas psicoterapias e tratamentos afins. Ainda hoje o inconsciente é um escândalo do qual a cultura tenta livrar-se. Talvez seja por isso que de tempos em tempos decreta-se a morte da psicanálise e o surgimento de uma nova maneira de tratar os conflitos do sujeito – tratamentos estes que não passam de repetição, “mais do mesmo” de um modo de abordagem do sofrimento humano que insiste em ignorar o sujeito transformando-o num objeto do gozo de um outro.

Aquilo que acompanha Lacan desde o início de sua inserção na psicanálise permanece vivo ainda hoje como o que pode fazer sustentar a pertinência da psicanálise: a defesa de uma subjetividade que inclua uma marca de diferença absoluta, isto é, seu inconsciente – e isso contra toda tentativa de objetivação dessa diferença.

Emmanuel Nunes de Mello

Notas

1. LACAN, J., Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade. Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1987.

2. SIMANKE, R. Metapsicologia Lacaniana: Os anos de formação – São Paulo: Discurso Editorial; Curitiba: Editora UFPR, 2002, pág. 154

3. LACAN, J., Formulações sobre a causalidade psíquica , in Escritos Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, pg 73.

4. idem.

5. O texto publicado em seu Ecrits em 1966 é uma retomada do original para ser apresentado no Congresso internacional de Psicanálise em Zurique em 1949, 13 anos depois de sua primeira apresentação.

6. LACAN, J., O estágio do espelho , in Escritos Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., pág. 97

7. LÉVI-STRAUSS, C. Tristes trópicos – São Paulo, Anhembi. 1957, pág. 53

8. SIMANKE, R., A letra e o sentido do “retorno a Freud”de Lacan: a teoria como metáfora, in SAFATLE, V. (org.),“Um limite tenso: Lacan entre a filosofia e a psicanálise” – São Paulo: Editora Unesp, 2003, pág. 283

9. LACAN, J., Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano, in Escritos Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.. pág. 813

10. Lacan rejeita a tradução inglesa que havia latinizado termos que o próprio Freud havia concebido em linguagem comum. Assim é que ao invés de id, ego e superego, Lacan, preferia os termos isso, eu e supereu.

11. Esclarecimento, termo alemão para o iluminismo.

12. “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”

13. LACAN, J., A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, in Escritos Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., pág. 527

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Que justiça queremos para Isabella?

A maciça exposição do caso Isabella coloca-me algumas questões sobre a natureza humana. É quase impossível ficar insensível diante de tamanha barbárie, truculência e desprezo pela vida. Mas devo confessar também que algo além disso me assusta. O que faz com que pessoas se desloquem de vários pontos do país com o único objetivo de montar guarita na porta da casa dos maiores suspeitos exigindo mais do que justiça, vingança? Mais do que serem presos, muitos desejam que eles passem pelo menos algum tempo numa cadeia pública para que a justiça da bandidagem encarcerada se exerça e eles paguem com muito sofrimento o mal que supostamente infligiram à menina indefesa.

É preciso ir com calma.

Todos sabemos que existe uma lei tácita que habita as carceragens. Sabemos como os presos julgam os casos de violência contra crianças. Minha pergunta, porém, é: afinal, que sociedade pode ser sustentada diante da esperança de que alguém seja julgado pelos que, justamente por desafiarem a lei, por não aceitarem o contrato social, precisam ser afastados do convívio com os outros? Nem todos que estão presos são perversos irrecuperáveis e acredito mesmo que a sociedade deve dar uma nova oportunidade para muitos deles retomarem sua vida de forma digna. No entanto, para longe de toda discussão sobre os motivos que levam um sujeito a se envolver com o crime, é inegável que um contingente enorme da população carcerária tem desprezo pelas balizas morais e pelos limites sociais. O que me recuso a aceitar é que nos sintamos tão desamparados pela justiça formal que ventilemos a possibilidade de que a justiça com as próprias mãos seja o único caminho possível de retaliação.

Freud dizia que a sociedade fundou-se pelo recalque dos instintos mais violentos. Foi justamente reprimindo sentimentos de ira, de destruição do outro e de violência, que os acordos sociais puderam ser estabelecidos. Isso certamente trouxe conseqüências funestas tanto individuais quanto coletivas. Uma delas são vistas nestes momentos ou como no caso do pai austríaco que violentava sua filha por vinte quatro anos e teve seis filhos com ela. A neurose, em seus mais variados graus, é fruto de sentimentos que os sujeitos inconscientemente decidem reprimir para sentirem-se aceitos e para aceitarem seus pares.

No entanto, não podemos dizer que Freud preferia a barbárie à civilização. Não se trata de dizer às pessoas “vamos, vivam sem recalques e repressões, façam o que quiserem pois assim serão felizes”. De forma alguma. Se há o recalque, há também a sublimação, como a da arte, por exemplo. Há também a psicanálise como forma de tratamento do reprimido.

Nossa sociedade, por mais injusta, corrupta e violenta que seja, conquistou progressos morais e sociais inegáveis. Não podemos ser a geração que abrirá mão deles. Não podemos entregar a justiça aos bandidos, assim como não podemos entregar nossos governos, nossos parlamentos, nossos votos nas mãos daqueles que vão denegrir centenas de anos de esforço em direção a uma sociedade mais justa. Se fizermos isto, perderemos a conta das “Isabellas” que ainda sofrerão.

terça-feira, 8 de abril de 2008

Uma ética para os tempos de decepção

Já nos esquecemos mas há poucos meses o senado federal passou por mais uma prova de sua capacidade como representante do povo: o julgamento do senador Renan Calheiros em seção fechada. Renan saiu vitorioso e o sentimento de derrotado caiu no colo da imensa maioria do povo brasileiro indignada em ter como senador da República alguém com tantas suspeitas de negociatas ilícitas. Passado tanto tempo, esquecemos que Renan continua lá.
Nossa frustração com a baixa política tupiniquim pode nos fazer escorregar para um posicionamento perigoso não só no que diz respeito ao nosso papel como cidadãos mas, também na vida particular: o cinismo – resposta à frustração típica de nosso tempo.
Convivemos com uma angústia herdada de questões surgidas na modernidade quando a “verdade” se tornou um conceito problemático. No séc. XX a segunda grande guerra deixa como resto mundo descrente das utopias, dos ideais e da idéia de uma humanidade em constante progresso moral. Porém, que tipo de sujeito é esse que não acredita em utopias sociais e em nenhuma grande ideologia social? Que tipo de sociedade ou política pode surgir daí? Que tipo de humanidade?
A queda dos ideais produz em nossas sociedades “pós-modernas” algo ainda mais perigoso: o enfraquecimento da palavra e do compromisso com aquilo que se diz. O exemplo proveniente do senado federal é no mínimo emblemático onde o acusado não se sente obrigado, muito menos constrangido a responder de forma clara às acusações que lhes são imputadas. Basta-lhe o ditado de que uma mentira dita cem vezes torna-se verdade.
De fato, a queda das utopias e das garantias de um mundo perfeito faz surgir como resposta basicamente dois fenômenos, duas vertentes de uma mesma angústia, a saber, o radicalismo e o cinismo.
O radicalismo é uma negação pela via do “não pode ser que não haja garantias” e, sendo assim, agarro-me por decreto à qualquer discurso que a prometa. Nego a perda de garantias para de alguma forma iludir ou dissimular a sua ausência.
O cínico por sua vez, não crê em garantias, mas sua resposta é o deboche. Não se acredita que alguém vá mesmo cumprir o que disse ou que seja punido por contrariar a lei. No cinismo a lei e a moral são fracas assim como a palavra e se não há garantias, também não há compromisso nem por que se comprometer com nada.
No entanto, a queda das utopias e a perda das garantias não precisam lançar-nos nestes dois extremos. O tipo de resposta às questões deste nosso tempo não precisa variar entre um radicalismo cego e intransigente por um lado e um desleixo cínico e descomprometido por outro.
A falta de uma garantia externa à felicidade não impede que cada um contribua para a melhora do mundo, pois o fato de haver pouca possibilidade de que o mundo venha a se tornar um lugar perfeito não significa que nada possa ser feito.
Se não tenho mais em quem colocar a culpa posso assumir a responsabilidade da minha história pessoal e coletiva e assumir que minhas escolhas podem ser equivocadas ou que, de fato, posso ser traído. Posso assumir também que a minha alienação e esquiva contribuirão apenas para que nada seja feito e que meu papel na história, às vezes, implica em exigir que outros se comprometam com aquilo que lhes cabe. Mas, acima de tudo, assumir que a covardia não está somente no medo da luta, mas também na artimanha da esquiva.

Emmanuel Mello
emmanuelmello@yahoo.com.br
Psicanalista, Mestre em Filosofia pela UFSCar e associado do CLIN-a (Centro Lacaniano de Investigação da Ansiedade)