terça-feira, 2 de outubro de 2007


A redenção da beleza

Emmanuel Mello

O Belo e o Bonito nem sempre são a mesma coisa. Na verdade, na maioria dos casos, elas estão divorciadas. Melhor dizendo, a beleza pode tornar algo bonito, mas nem tudo que é bonito contém beleza. Principalmente pelo fato de que o que é bonito é aquilo que compactua com certo pensamento geral, senso comum, ferramenta da ideologia dominante e mantenedor do "status-quo". O bonito é da ordem do apaziguamento, da homeostase, da continuidade, da concordância; é ser normal, arrumadinho. Neste sentido, ser Punk, pode ser apenas uma tentativa de adequação a um determinado grupo onde andar de calça rasgada é ser bonito. As mulheres atestam isso quando rejeitam o elogio de estão “bonitinhas”. “Bonitinho é o feio arrumado”, vociferam.

A Beleza é outra coisa. A Beleza uma expressão das mais humanas. Pode ser encontrada em qualquer lugar, em qualquer tipo de expressão humana a pesar de nem sempre dar o seu braço ao que é aceito como padrão de “boniteza”.

A Beleza não compactua, não negocia. Às vezes apazigua, às vezes é concordância mas sempre, invariavelmente, é libertação. Mesmo que escandalosa, mesmo gerando calafrios e arrepios, a beleza sempre produzirá a quebra das cadeias da mediocridade. Pois está do lado da verdade. Ainda que ela venha travestida de um pensamento datado ou até mesmo equivocado a Beleza revelará uma verdade. Posto que, Beleza e conteúdo são duas coisas diferentes. O conteúdo sofre do mesmo mal do que é bonito: é transitório e marcado pelo contexto histórico, social, grupal, temporal. A beleza, por sua vez, é eterna, atemporal e “supracontextual”, ainda que não seja universal – às vezes, para se perceber a beleza é preciso entrar um pouco no contexto, mas feito isso, qualquer um pode reconhece-la, ainda que não a ache bonita.

Mas não nos enganemos: o bonito é o que está na moda e, de vez em quando, escandalizar, causar calafrios e arrepios vira moda. De repente fica na moda ser de esquerda, ser roqueiro, ser rebelde. É “chique” ouvir Beethoven, ler Saramago, citar Drummond e Lorca, amar Picasso. Ou seja, às vezes o Bonito se maquia como o Belo mas a Beleza escapa ao que é apenas bonito. Gostar de vinho, comer no Mcdonald, folhear Caras, ler a Folha de São Paulo, assistir a entrevista com a loira do mês, tudo isso pode fazer parte da mesma série: consumir o que se estabelece como bonito.

A beleza, por sua vez, se veste de Arte. A Arte é a forma como a beleza se apresenta. A Arte é expressão máxima da beleza que o humano pode fabricar. A Arte não está na erudição, não está na complexidade nem no que parece inacessível à maioria. Ao contrário a Arte é o produto da cultura, da alma, da sensibilidade.

O artista, o verdadeiro artista, sobrevive com o dinheiro (muito ou pouco) e vive de beleza. Pois ganhe muito ou ganhe pouco nenhuma arte sobrevive sem a busca pelo que é belo. E não há nenhuma idealização nisso. Pode-se inventar um produto que caia nas graças consumistas da população, mas se não há Beleza, não se fez arte, apenas mais um produto que será esquecido no próximo verão. A Arte só existe com Beleza, “beleza pura” como diz Caetano Veloso. E é de Caetano e Gil que vêm uma das maiores expressões do que é a beleza e o seu contraste com o que a sociedade aceita como bonito: “Eu quis cantar minha canção iluminada de sol/ Soltei os panos sobre os mastros no ar/ Soltei os tigres e os leões no quintal/ Mas as pessoas na sala de jantar/ São ocupadas em nascer e morrer”.

O artista nos mostra que a Beleza está no olhar, no modo como olhamos. Está também no ouvido, no modo como ouvimos. Assim é que Schopenhauer, filósofo alemão, que mesmo não sendo aquilo que se poderia chamar de um otimista, reconhece que “uma cena da vida cotidiana, uma cena íntima, pode ter um grande interesse ideal, se colocada em plena e brilhante luz seres humanos, atos e desejo humanos até aos mais ocultos recônditos”. É isto que o pintor faz ao impregnar de intensidade a imagem de uma mulher no simples ato de fazer um bolo. O artista oferece beleza a uma cena trivial.

E se viver é uma arte, viver é oferecer beleza a cenas triviais. A beleza está na atitude. Na atitude generosa de um desconhecido. Na atitude compenetrada da criança. Na atitude de abandono ao outro que é própria dos apaixonados. Na atitude instintiva do canto de um pássaro. Na atitude corajosa de oferecer ao mundo um sentido. Na atitude criativa da arte e dos milhões de artistas que todo dia desafiam a vida para continuar vivendo. Na atitude sofrida de uma decisão que não pode mais ser adiada. No drama de assumir as responsabilidades da sua própria existência. Se viver é uma Arte que a vivamos com Beleza.

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